Tim Vickery: Por que questão da moradia está cada vez mais explosiva no Rio
- Tim Vickery
- Colunista da BBC Brasil*

Crédito, Eduardo Martino
Sei que parece que já se passou uma eternidade, mas vou iniciar esta humilde coluna lembrando os problemas na Villa Olímpica nos dias anteriores aos Jogos: vazamentos, goteiras, fios desencapados e tal. Houve um esforço para solucioná-los, o mundo continuou girando e todos atribuíram o episódio ao hábito brasileiro de deixar tudo para última hora.
Pode ser. Mas o caso tem um aspecto mais geral. Esses apartamentos foram construídos por empresas privadas, cuja prioridade não era a entrega em tempo para os Jogos. No contrato com o Rio, o Comitê Olímpico Internacional previu o perigo: "a cidade reconhece", diz o órgão, "que os empreiteiros provavelmente têm dois objetivos primários: maximizar o valor do terreno e entregar as obras ao menor custo".
Os apartamentos foram feitos para serem vendidos, mas parece que a procura tem sido muito pequena, daí a falta de recursos para as obras de acabamento.
A dificuldade em vender os apartamentos pode ter motivos específicos, como a sua localização e a crise na economia local. Mas existe um fator universal, pelo menos no mundo ocidental: o preço de imóveis criou uma bolha enorme, desproporcional à capacidade de pagá-los.
Esse triste processo aconteceu primeiro no meu país de nascença. Lembro-me das palavras de um amigo meu em Londres alguns anos atrás. "Ralei o ano inteiro", ele me contou, "e ganhei uma grana… Mas a minha casa subiu em valor ainda maior. Quer dizer, a minha casa ganha mais do que eu!"

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Óbvio que essa situação é insustentável – especialmente para quem não tem casa. Mas faz parte de uma fase do capitalismo em que o aluguel parece mais interessante do que a produção.
Enquanto o preço da moradia sobe e casas próprias são adquiridas com financiamentos de longo prazo, há duas tendências fortes indo na contramão: primeiro, o fato de o mundo atual não oferecer a mesma segurança de trabalho de antigamente. Segundo, o fato de os salários em muitos setores estarem, na melhor das hipóteses, estagnados.
João Fellet tenta entender como brasileiros chegaram ao grau atual de divisão.
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A criação destrutiva do capitalismo tipicamente mostrava uma dinâmica impressionante, a partir da qual a atividade nova geralmente pagava melhor do que aquela que ela substituia, algo que ajudava bastante a transição.
Mas, na fase atual, isso não parece estar acontecendo. A revolução digital muitas vezes acaba destruindo valor, tornando atividades menos rentáveis. Como, então, neste contexto, pagar um valor cada vez maior pela moradia?
Houve uma época em que a construção de casas próprias era claramente de interesse do sistema. Isso ficou explicito nos Estados Unidos a partir da década de 30, quando se concluiu que um trabalhador que precisa pagar a sua hipoteca estaria menos disposto a entrar em greve, pois teria muito mais a perder.
Agora, o balanço é diferente. A mão de obra ficou menos importante; funções são eliminadas pela tecnologia ou transferidas para China. Agora, mais até do que um fator de produção, o cidadão ocidental é um consumidor. O sistema depende disso.
Mas a sua capacidade de consumir está minada pelo valor que paga por sua moradia. A disseminação de cartões de crédito consegue tapar esse buraco somente no curto prazo. Porque, no fundo, trata-se de uma transferência de riqueza para os donos de imóveis. E duvido que o consumo de uma classe de rentistas e suas famílias seja suficiente para sustentar um modelo econômico.

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O transporte urbano tem sido um campo de batalha importante em protestos recentes – vale lembrar que os grandes protestos no Brasil em 2013 começaram quando subiu o preço das passagens em São Paulo. Isso tem a ver com o debate.
Na medida em que a moradia fica mais cara, as pessoas são obrigadas a se mudar para a periferia das cidades, onde as conexões de transporte são precárias. Mas acredito que a discussão em torno da moradia também vá ficar cada vez mais explosiva. No cenário atual, a casa está caindo – e não somente em cima dos atletas olímpicos.
*Tim Vickery é colunista da BBC Brasil e formado em História e Política pela Universidade de Warwick
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