Tim Vickery: É possível transformar o Brasil em um grande país, mas só se o povo deixar de ser encarado como um problema
- Tim Vickery
- Colunista da BBC News Brasil*

Crédito, Eduardo Martino
Um pouco mais de três anos atrás, iniciei esta série de colunas com uma homenagem à tolerância brasileira. Agora, despeço-me deste espaço com a fé um pouco abalada. Felizmente, num nível pessoal, as minhas experiências desde então pouco fizeram para mudar a minha opinião. Em um nível coletivo, porém, não posso falar o mesmo. Não tem como negar que, entre brasileiros, surgiram intolerâncias perigosas.
Refletindo no humilde conteúdo destes três anos de coluna, acho que o fio dominante que eu venho tentando expressar é o seguinte: em todos os meus anos aqui, percebi uma certa curiosidade com a minha biografia.
Superada a revelação chocante que não sou um lorde, existe um espanto com a realidade – de que venho de um conjunto habitacional, de pais pobres, crescido numa família sem carro ou telefone, de que lembro da vida sem geladeira, televisão, máquina de lavar etc.
Como todos, sou um produto da minha época. E, felizmente, a minha época de infância talvez tenha sido a experiência mais bem-sucedida na história da Humanidade: as décadas no Ocidente depois da Segunda Guerra Mundial.
A guerra deixou um legado interessante – um Estado prestigiado e valores coletivos em alta. As finanças do meu país estavam em frangalhos, com a dívida em 240% do PIB. Mas o país resolveu investir, criando um Estado de bem-estar social. Ressalto que não estou fazendo panfletagem política. Na época, o processo ganhou apoio de direita e esquerda.
Não foi um período perfeito – longe disso. E, no longo prazo, gerou pressões inflacionárias que acabaram botando fim no progresso. Mas, com grandes investimentos do Estado, com o capital financeiro sob controle e com valores coletivos, os índices de felicidade nunca foram tão altos. Houve, numa escala nunca antes vista, uma combinação dourada de segurança econômica junto com oportunidades.
Os valores do mundo atual, sob o domínio do capital financeiro, são os opostos. E a combinação nociva de insegurança econômica junto com a falta de oportunidade é a receita perfeita para a corrupção e crime – como fica evidente na realidade brasileira.
Crédito, Getty Images/Keystone
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Venho tentando, então, argumentar em favor de valores da democracia social – valores que fizeram grande diferença para mim e para a minha geração. Vejo com tristeza que esses valores hoje em dia estão fora de moda. E vejo com mais tristeza ainda o que acontece no Brasil: cada tentativa tímida de direção da democracia social é interrompida por uma manada de elefantes gritando "Comunismo! Comunismo!"
Entendo que um governo de extrema direita precisa se defender contra um "inimigo interno", uma força supostamente subversiva. Mas será que, no país dos elevadores social e serviço, alguém sério possa realmente acreditar numa ameaça comunista? Com a sua tara por velhas hierarquias e privilégios, ainda parece que a Guerra Fria anda bem quente por aí.
Friso que não tenho e nunca tive grande simpatia pelo projeto ou pelo modus operandi do PT.
Entendo que, obviamente, a corrupção não começou com o PT, e que, no setor privado, ela é vista por muitos como um custo normal de negócios. Entendo que, dentro de um contexto de fragmentação partidária, fica muito difícil governar sem corrupção. Mas também entendo que, orientado por suposto "realismo", o PT entrou numa armadilha.
Um esquema de corrupção pode se iniciar como um meio, mas logo se transforma num fim. Aí, vira o Hotel California - onde você pode fazer check-out, mas não pode nunca sair. Como força nova, o PT tinha a obrigação de ter encontrado uma nova maneira de fazer política.
Deveria ser evidente, a partir de Argentina a Venezuela, que os problemas econômicos da América do Sul extrapolam as questões de direita e esquerda. Sair da dependência da exportação de matérias-primas exige um projeto gigante e regional. O legado do PT neste sentido foi claramente insuficiente.
Crédito, AFP
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Aliás, achava muito exagerada a autocongratulação do PT sobre o boom econômico da década anterior, que foi consequência de fatores externos – principalmente do crescimento alucinante da China. Como este ficou insustentável, o fim do boom e a ressaca que veio depois eram inevitáveis.
Dois anos do governo Temer têm sido suficientes para mostrar que o problema não foi simplesmente o PT. Mas, como o partido aceitou crédito indevido na subida, então a lei do karma se aplica do outro lado da colina.
O ciclo do PT, então, chega ao fim em grande parte por consequência de seus próprios erros. Mas também, acredito, em função de seus acertos.
Pelo menos, no século 21, houve uma tentativa, tímida mas importante, de plantar uma idéia de inclusão social. Abriram-se oportunidades educacionais para um leque maior de pessoas, reconheceu-se melhor a diversidade do país em termos raciais e de orientação sexual, e as mulheres ganharam um pouco mais espaço.
Ação e reação. Parte da onda atual somente pode ser entendida como um contra-ataque, um desejo, no país dos elevadores social e de serviço, de reimplantar as velhas certezas da hierarquia - uma ordem com regresso, que abertamente busca a recriação de um Brasil imaginário de cinco décadas atrás.
O objetivo declarado é transformar o Brasil numa grande nação. Bastante possível - mas somente quando o povo passa a ser visto como o potencial do país, merecedor de investimentos, em vez de ser tratado como um problema de ordem pública. Somente, em conclusão, com os valores da democracia social.
*Tim Vickery é colunista da BBC News Brasil e formado em História e Política pela Universidade de Warwick.
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