'Nos veem como brinquedos': as mulheres que acusam autoridades da Coreia do Norte de abuso sexual

Mulher trabalhando em fábrica em Pyongyang, na Coreia do Norte (agosto de 2018)

Crédito, Carl Court

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O relatório pede que a Coreia do Norte trate o abuso sexual como crime

Autoridades norte-coreanas praticam abertamente abuso sexual contra mulheres, respaldadas pela impunidade. É o que afirma um relatório elaborado pelo grupo de direitos humanos Human Rights Watch (HRW).

De acordo com o documento, a prática é tão comum que se tornou parte da vida cotidiana. E pode ser considerada endêmica.

O relatório é baseado em entrevistas com 54 norte-coreanas e oito ex-funcionários do governo que fugiram do país desde 2011, quando Kim Jong-un assumiu o poder, e forneceram relatos detalhados de casos de estupro e abuso sexual.

A ONG aponta que foi revelada uma cultura de abusos aberta, que não é questionada, principalmente por parte de homens em posição de poder.

Entre os agressores, estão funcionários de alto escalão do governo, guardas de unidades prisionais, policiais e soldados.

"Eles nos veem como brinquedos [sexuais]. Estamos à mercê dos homens", contou Oh Jung-hee, ex-comerciante de 40 anos, aos autores do relatório.

Segundo ela, os guardas passavam regularmente pelo mercado cobrando propina, muitas vezes na forma de coação sexual.

"Fui vítima muitas vezes. Nos dias em que tinham vontade, os guardas do mercado ou policiais me pediam para segui-los até uma sala vazia fora do mercado, ou algum outro lugar que escolhiam. O que eu podia fazer?", relatou Oh Jung-hee, acrescentando que se sentia impotente para resistir ou denunciar os abusos.

De acordo com a ONG, a recusa poderia significar a perda de sua principal fonte de renda, comprometendo a sobrevivência da família, o confisco de dinheiro e mercadorias, ou até mesmo o envio para campos de trabalho forçado ou de presos políticos por estar envolvida em atividades comerciais.

"Às vezes, do nada, você chora à noite, sem saber por quê."

Coletar informações sobre o que acontece dentro da Coreia do Norte, um dos países mais fechados do mundo, é extremamente difícil - e relatórios como esse são raros.

'Minha vida estava nas mãos dele'

Segundo a HRW, algumas mulheres relataram que o abuso sexual tinha se tornado tão normalizado que não achavam que era algo "incomum" - e que haviam aceitado como parte da vida cotidiana.

A falta de educação sexual e o abuso de poder desenfreado dos agressores foram alguns dos muitos fatores que levaram a essa mentalidade, acrescenta o relatório.

Ilustração de mulher sendo interrogada por policial

Crédito, HRW

Legenda da foto,

A Human Rights Watch divulgou ilustrações que denunciam o abuso junto ao relatório

Entrevistadas contaram à ONG que quando um oficial "escolhe" uma mulher, ela não tem opção, a não ser obedecer e atender às suas demandas - seja de ordem sexual, financeira ou de outra natureza.

O relatório chama atenção também para o caso de mulheres que estão sob custódia em presídios ou centros de detenção, que também "têm pouca escolha caso tentem se recusar ou denunciar, se arriscando a sofrer mais violência sexual, períodos mais longos de detenção, espancamentos e trabalho forçado".

Pressão social

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Isso aconteceu com Park Young-hee, uma ex-fazendeira na faixa de 40 anos, que estava sendo interrogada por um policial em um centro de detenção preventiva, após ser capturada tentando fugir do país.

"Ele me fez sentar bem perto dele... [e] me tocou entre as pernas... diversas vezes durante vários dias", afirmou.

"Minha vida estava nas mãos dele, então, eu fiz tudo que ele queria. Como eu poderia fazer algo diferente?"

"Tudo o que fazemos na Coreia do Norte pode ser considerado ilegal, então, tudo depende da percepção ou atitude de quem está analisando", completou.

Além disso, o relatório cita que o forte estigma social leva as vítimas a permanecerem em silêncio.

"Se uma mulher é estuprada, é porque ela devia estar flertando", disse Lee Chun-seok, uma ex-professora e comerciante com quase 50 anos.

"Tive medo e vergonha", contou Yoon Soon-ae, que foi violentada. "Nunca contei a ninguém. Na Coreia do Norte, é como cuspir em seu próprio rosto. Todo mundo teria me culpado", relatou.

A HRW pediu que a Coreia do Norte "reconheça o problema da violência sexual" e garanta que seja "tratado como crime".

Um relatório da ONU de 2014 concluiu anteriormente que "violações sistemáticas, generalizadas e graves de direitos humanos" haviam sido cometidas pelo governo norte-coreano.

E acrescentou que o aborto forçado, o estupro e a violência sexual eram realizados em prisões e centros de detenção.

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