'Nomikai', o costume de beber com os chefes que está em declínio no Japão
- Virginia Harrison
- BBC News

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Durante muito tempo, beber depois do expediente era visto no Japão como uma forma de conhecer melhor o chefe
Riku Kitamura lembra de seu "primeiro bar" como recém-formado no Japão.
Hoje com 28 anos, quando ele começou a trabalhar - em uma empresa de pesquisa de mercado - sabia que era comum que os colegas saíssem para tomar uma cerveja depois do expediente.
"À medida que a noite ia passando, senti uma pressão para beber mais, que eu tinha que acompanhar o ritmo dos outros. Fiquei bem bêbado."
Beber com os colegas depois do trabalho é há muito tempo parte da cultura corporativa japonesa. O nomikai, como esses encontros etílicos são chamados, era visto até pouco tempo como elemento central na construção das relações de trabalho.
Era, para muitos funcionários, uma forma de conhecer melhor os chefes.
Em algumas empresas, entretanto, esses encontros têm se tornado menos frequentes à medida que tem crescido no país a preocupação com abuso de poder - expressão que, nesse caso, engloba desde bullying no ambiente de trabalho até isolamento de um funcionário ou mesmo agressão física.
"Forçar as pessoas a saírem para beber depois do trabalho pode ser visto como uma forma de abuso de poder", afirma Kumiko Nemoto, professor de sociologia da Universidade de Estudos Estrangeiros de Kyoto.
"Isso acontecia com frequência no passado. Era parte da cultura corporativa do Japão, mas vem cada vez mais sendo visto como algo impróprio."
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Riku Kitamura diz ter 'sentido a pressão social' para participar dos encontros no bar depois do expediente quando começou a trabalhar
O governo anunciou intenção de instituir a partir do próximo ano regras concretas para tentar evitar que situações que deveriam ser de lazer se transformem em um constrangimento para os funcionários.
A iniciativa é parte de um esforço maior para tentar acabar com comportamentos nocivos que prejudicam a qualidade de vida dos trabalhadores japoneses, que normalmente cumprem longas jornadas.
Sem uma definição clara do que é ou não aceitável, muitos gerentes e supervisores têm hesitado em convidar suas equipes para beber depois do trabalho.
"Eles têm medo de uma eventual repercussão negativa", afirma Kitamura.
'As pessoas estão mais conscientes'
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Tem sido assim com Tats Katsuki, gerente de uma empresa comercial, que prefere não socializar com sua equipe após o expediente para não correr o risco de descumprir as rígidas regras da companhia que balizam a relação entre chefes e subordinados.
"As pessoas estão preocupadas com todo e qualquer problema nesse sentido, seja abuso de poder, assédio moral ou sexual."
A consciência em relação a essas questões tem aumentado especialmente nos últimos cinco anos e "pessoas são demitidas o tempo todo por esse tipo de coisa", ele acrescenta.
"Funcionários incomodados sempre podem mandar e-mails anônimos para o RH ou deixar cartas na caixa de reclamações. As pessoas estão mais atentas e mais prudentes."
Essa realidade é bem distante daquela que o profissional de 47 anos conheceu quando começou a carreira, mais de duas décadas atrás.
Naquela época, diz, "a mentalidade era diferente". Ele saía para beber com colegas pelos bares de Tóquio até quatro vezes por semana.
"O chefe chegava e dizia: 'Você está livre agora? Vamos lá'. Não tinha muito como dizer 'não'."
Os colegas também costumavam esticar depois de jantares com clientes e a bebedeira muitas vezes entrava pela madrugada. Em determinado momento, Katsuki chegou a sentir que estava bebendo demais e tinha dificuldades constantes com a ressaca.
"Mas na época eu achava isso bom, porque você acaba conhecendo bem seu chefe. A gente conversava muito sobre trabalho, mas também sobre muita coisa além do escritório", ressalta.
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Para muitos japoneses, o bar com os colegas depois do expediente era quase uma extensão do trabalho, uma obrigação
A geração de Katsuki entrou para a força de trabalho japonesa depois que a última bolha econômica estourou no país, no início dos anos 1990.
Uma era de excessos e extravagâncias teve um fim abrupto e deu lugar à chamada "década perdida" do Japão.
A ideia de ficar no mesmo emprego até a aposentadoria começou a perder força, à medida que mais trabalhadores cumpriam jornadas reduzidas e as mulheres participavam mais do mercado de trabalho.
A partir daí, elementos até então tradicionais da cultura corporativa do Japão passaram a ser questionados.
Antes de a bolha estourar, diz o professor Nemoto, da Universidade de Estudos Estrangeiros de Kyoto, beber depois do expediente era quase uma extensão do trabalho.
Quando o mundo do trabalho começou a se transformar, entretanto, as expectativas dos funcionários também mudaram - inclusive em relação a seus superiores.
Novas regras
Para Katsuki, hoje, o ambiente de trabalho no Japão é igual a qualquer outro nas grandes metrópoles globais.
Ele diz que a quantidade de álcool ingerida em eventos sociais tem diminuído e poucos chefes dão um "tapinha no ombro" do subordinado minutos antes do fim do expediente chamando para ir ao bar.
Isso, em parte, seria reflexo do medo de que a atitude fosse percebida como abuso de poder, diz ele.
A experiência do gerente é exemplo de uma mudança observada não apenas no Japão, mas em diversos outros países em que ainda não se tem segurança sobre o que é apropriado ou não no mundo das relações corporativas.
Katsuki diz que discute o tema com frequência com suas equipes e vem insistindo com as esferas administrativas para que sejam estabelecidos limites mais concretos do que é aceitável e do que está além dos limites.
"Muita gente não sabe, por exemplo, se é problemático falar para uma colega: 'Você mudou seu cabelo'. As pessoas conversam menos porque têm medo de dizer alguma coisa que possa ser interpretada como assédio."
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A bebida e a comida são importante elemento de convívio social no Japão, diz professor Parissa Haghirian
Sentir-se 'excluído'
Enquanto diretores e gerentes tentam navegar em águas ainda pouco conhecidas neste sentido, funcionários de gerações mais jovens reclamam às vezes por se sentirem excluídos.
Para alguns deles, o medo acabou provocando uma precaução exagerada.
Kitamura, que hoje trabalha como gerente de projetos na empresa de pesquisa de mercado CarterJMRN, em Tóquio, diz que funcionários novos já chegaram a se queixar de que "sentiam que não estavam sendo convidados" para os eventos sociais do trabalho.
"Eles se sentem excluídos. Beber ainda é uma ferramenta social para se conectar com seu diretor ou seu gerente."
No passado, ainda que se sentisse pressionado como recém-chegado para participar dos encontros com os colegas, ele gostava de beber e de se sentir incluído.
Parissa Haghirian, professora de gestão internacional na Universidade Sophia, em Tóquio, ressalta a importância que a bebida e a comida têm para os japoneses como elemento de convívio social.
"As pessoas gostam de beber no Japão", ele diz. "Beber e fumar são vistas como coisas que relaxam. Elas não precisam necessariamente ter uma conotação ruim."
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