Intriga, traição e 'anarquia': política britânica vive dias de 'Game of Thrones' após votação sobre UE
- Pablo Uchoa - @pablouchoa
- Da BBC Brasil em Londres

Crédito, Getty Images
Ex-aliados: Michael Gove (no pódio) e Boris Johnson
House of Cards ou Game of Thrones? A escolha do seriado ficcional fica ao gosto de cada um.
Seja qual for, a comparação da vida real com o campo da imaginação se tornou inevitável na Grã-Bretanha pós-plebiscito sobre a União Europeia (UE).
Desde a consulta popular em que os britânicos escolheram sair do bloco comum, o Reino Unido vive uma montanha-russa política, com o anúncio de saída do primeiro-ministro, um voto de não-confiança no líder da oposição, prospectos de uma nova eleição geral e até de um plebiscito pela independência da Escócia.
Mas o que mais tem evocado dramas de ficção sobre disputas de poder é a sucessão pela liderança do Partido Conservador - em última instância, a escolha do próximo primeiro-ministro.
Na quinta-feira, o homem então apontado quase certamente como o próximo chefe de governo - o ex-prefeito de Londres, Boris Johnson - surpreendeu a todos ao anunciar, em discurso para um plateia de jornalistas atônitos, que abria mão de se candidatar à liderança dos Conservadores.
Aos poucos vieram à tona as razões da decisão - que tirava da corrida a principal figura da campanha pela saída do Reino Unido da UE: é que o principal parceiro e escudeiro de Johnson na campanha, o ministro da Justiça, Michael Gove, tinha decidido, de última hora, concorrer ele mesmo, após concluir que o ex-prefeito de Londres "não era o homem certo para o cargo".
Pelas regras do parlamentarismo, o líder do partido majoritário chefia o governo.
Analistas políticos não deixaram de notar o tom ameaçador de Gove - até então, seu principal aliado: "Boris não pode prover a liderança nem reunir a equipe para os desafios à nossa frente".
'Facada'
Sem maiores detalhes, a declaração, que muitos consideraram uma "facada nas costas de Boris", despertou especulações entre os jornalistas: teria ele acesso a informações sobre Boris que a imprensa não tinha? Teria ele ameaçado fazer uso delas em uma eventual campanha pela liderança do partido?
O curioso é que, até então, o ministro do governo de David Cameron sempre negou veementemente qualquer intenção de ocupar o número 10 de Downing Street, a residência oficial do premiê.
No início de junho, declarou, por exemplo: "Há muita gente com talento para ser primeiro-ministro. Me inclua fora."
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Manobra de Gove levou a comparações com Frank Underwood, protagonista de 'House of Cards'
Desde o fim da campanha para o plebiscito, Gove havia desaparecido atrás das cortinas do partido. Há relatos de que no dia D (do plebiscito) foi para cama relativamente cedo, à diferença de muitos que vararam a madrugada aguardando o fim da apuração.
Nunca houve dúvidas de que ele saíra fortalecido do episódio e tudo levava a crer que seria antes uma figura importante impulsionando a separação do Reino Unido da União Europeia .
Porém, comparando com as peças de xadrez, talvez um bispo ou até mesmo uma rainha - e não o rei.
'Caçar ou ser caçado'
Michael Gove é conhecido por seus impecáveis bons modos - alguns dizem, impecáveis demais, até ensaiados. O golpe mortal, imprevisto, desferido em Boris Johnson, emprestou ares sinistros a uma trama política que muitos esperam ser "sangrenta".
A BBC recordou as palavras de Frank Underwood de House of Cards, o macabro deputado ficcional que ignora todos os escrúpulos na sua ascensão à Casa Branca: "Para aqueles de nós escalando até o topo da cadeia alimentar, não pode haver misericórdia. Só há uma regra: caçar ou ser caçado".
O próprio Gove, entretanto, prefere ser comparado a Tyrion Lannister, um dos mais "bonzinhos" personagens de Game of Thrones.
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Tyrion Lannister, um dos mais piedosos e bonzinhos personagens de 'Game of Thrones'
Nesta sexta-feira, o ex-chanceler conservador Ken Clarke chamou a entrada dele na disputa de "manobra bizarra", e disse que ela o desqualificava para liderar um país em meio a uma "grave crise".
Até seus simpatizantes reconhecem o elemento de intriga na história. O deputado Dominic Raab, que virou a casaca de Johnson para Gove, disse que a decisão parece "feia, horrível e maquiavélica", mas que a parceria entre os dois ex-aliados não funcionaria.
Disputa implacável
Na disputa pela liderança conservadora, que deve culminar no dia 9 de setembro quando só restarão dois candidatos dos cinco atuais, a principal adversária de Gove é a atual ministra do Interior britânica, Theresa May.
May é ela própria descrita como implacável. Comentaristas políticos dizem que a relação entre os dois é mais que fria - é glacial.
"Se você pensava que a campanha do plebiscito tinha sido suja, não viu nada ainda", escreveu a colunista de política da Sky News, Sophy Ridge.
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Jornal 'Metro' transformou Michael Gove, Boris Johnson e Theresa May em personagens de 'Game of Thrones'
Ao longo da campanha, a ministra defendeu a permanência na UE, em lealdade ao primeiro-ministro, David Cameron, mas de forma discreta a não irritar o grande número de deputados do partido que queriam a saída.
Ela lidera no apoio entre os deputados e nesta sexta-feira recebeu também o apoio do tabloide Daily Mail - em um texto na primeira página do jornal.
Anarquia
"Nunca vi tanta gente sendo sacrificada politicamente em uma só semana", disse à BBC o acadêmico Tim Bale, professor da Universidade Queen Mary e autor de um livro sobre o Partido Conservador que cobre o período de Margaret Thatcher a Cameron.
"Sempre há sangue derramado na política, mas nunca tanto assim. É porque o que está em jogo é muito alto. Não é mais um jogo, porque vamos sair da União Europeia e isso é uma situação extremamente séria."
A revista Economist, que circula neste fim de semana com a capa "Anarquia no Reino Unido", condensa sua visão em um duro editorial intitulado "À deriva".
"Sem líder e dividido, o Reino Unido prova pela primeira vez a vida desancorada da Europa."