Seca causa migração e transforma cidade na 'capital das araras' do Brasil

  • Thiago Guimarães
  • Da BBC Brasil em Londres
Em Campo Grande, as araras aprenderam a conviver com trânsito intenso, redes de energia, linhas com cerol, poluição sonora e do ar

Crédito, Joao Marcos Rosa

Legenda da foto,

Em Campo Grande, as araras aprenderam a conviver com trânsito intenso, redes de energia, linhas com cerol, poluição sonora e do ar

Em meio ao vaivém intenso de pedestres e veículos, emaranhados de fios elétricos, linhas com cerol e postes, objetos colorem e fazem barulho no céu de Campo Grande.

A cidade no centro-oeste do Brasil ganhou o título informal de "capital das araras", uma homenagem às aves que se adaptaram de maneira única ao ambiente urbano da capital de Mato Grosso do Sul.

É um fenômeno sem precedentes nessa escala no país, segundo biólogos que estudam as aves na cidade.

Durante período de reprodução, de julho a dezembro, aves cruzam os céus da cidade em busca de ninhos; migração nessa escala é inédita até em cidades da Amazônia, afirmam pesquisadores

Crédito, Joao Marcos Rosa

Legenda da foto,

Durante período de reprodução, de julho a dezembro, aves cruzam os céus da cidade em busca de ninhos; migração nessa escala é inédita até em cidades da Amazônia, afirmam pesquisadores

A proximidade do Pantanal – a maior área alagada do mundo, um mundo de água doce e vida selvagem do tamanho de Portugal – ajudou. Campo Grande é arborizada e ainda mantém manchas de cerrado, buritizais e inúmeras árvores frutíferas.

As araras aproveitam um belo cardápio de espécies exóticas e nativas do cerrado – encontram comida em pelo menos 14 árvores, como jatobá, ingá, cedro-rosa e tamarindo.

Indiferentes ao movimento e ao barulho, elas fizeram morada em diferentes pontos da cidade, num fluxo que começou em 1999, após uma seca prolongada na região.

Aves fazem morada em troncos de árvores mortas e aproveitam abundância de árvores frutíferas na região, como o buriti

Crédito, Joao Marcos Rosa

Legenda da foto,

Aves fazem morada em troncos de árvores mortas e aproveitam abundância de árvores frutíferas na região, como o buriti

Optam por restos de buritizais, palmeiras secas e até ninhos artificiais, obra de moradores que começam mais e mais a se integrar com os bichos.

As araras ficam ainda mais visíveis nessa época do ano. É período de reprodução, que vai de julho a dezembro, e casais cruzam os ares em busca de ninhos para procriar.

Em geral, os psitacídeos – a família das araras, que inclui papagaios e periquitos – são monogâmicos e formam casais pela vida toda.

Casais são vistos com frequência durante época de reprodução, mais de 200 filhotes nasceram nos últimos cinco anos na cidade

Crédito, Joao Marcos Rosa

Legenda da foto,

Casais são vistos com frequência durante época de reprodução, mais de 200 filhotes nasceram nos últimos cinco anos na cidade

Migração

Uma longa estiagem no ano de 1999 marcou a chegada das araras-canindé e de araras-vermelhas (Ara chloropterus) a Campo Grande. A seca, somada a desmatamentos e queimadas na zona rural e municípios do entorno, reduziu de forma brusca a oferta de alimentos para essas aves.

Na ocasião, o Instituto Arara Azul, que pesquisa o comportamento dos bichos, monitorou grupos de 27 a 48 araras que estavam em Terenos, a 32 km de Campo Grande, e poucos dias depois já circulavam pela capital.

Em Campo Grande, as aves foram de áreas de buritizais e regiões afastadas até palmeiras no centro da cidade; biólogos cadastraram 74 ninhos

Crédito, Joao Marcos Rosa

Legenda da foto,

Em Campo Grande, as aves foram de áreas de buritizais e regiões afastadas até palmeiras no centro da cidade; biólogos cadastraram 74 ninhos

Segundo a bióloga Neiva Guedes, presidente do instituto, hoje existem pelo menos 400 araras em Campo Grande, e mais de 200 filhotes já nasceram na cidade desde 2010.

Pesquisadora do Instituto Arara Azul em ação de captura de filhotes arara para monitoramento

Crédito, Joao Marcos Rosa

Legenda da foto,

Pesquisadora do Instituto Arara Azul em ação de captura de filhotes arara para monitoramento

De 2001 a 2005, Guedes acompanhou, a menos de 150 metros de sua casa, a reprodução de araras em um tronco de buriti. Observou disputas de casais, nascimento e voo de filhotes. E até interveio pela manutenção no ninho quando a avenida foi duplicada – o traçado da via acabou sendo desviado para preservar a árvore.

O instituto cadastrou 74 ninhos de araras em Campo Grande, dos quais 34 são monitorados. Um deles, por exemplo, fica em uma das esquinas mais movimentadas da cidade, a da rua Dom Aquino com avenida Duque de Caxias.

E as pesquisas mostram que, apesar das dificuldades impostas pelo ambiente urbano, as araras-canindé estão se reproduzindo na cidade com sucesso.

"Eles conseguem se manter na cidade o ano inteiro. E já fazem parte do cotidiano, a população se acostumou a ouvi-las todo dia", afirma Guedes.

Aline Pereira, do Instituto Arara Azul, faz medição de ave; grupo acompanha o desenvolvimento das araras na região

Crédito, Joao Marcos Rosa

Legenda da foto,

Aline Pereira, do Instituto Arara Azul, faz medição de ave; grupo acompanha o desenvolvimento das araras na região

Acolhimento

Há moradores que chegam a oferecer abrigo para as aves. O major do Corpo de Bombeiros Pedro Centurião, por exemplo, durante uma obra na área de lazer de sua casa, resolveu cortar as folhas de uma palmeira que sujava muito o quintal.

Foi a senha para as araras começarem a frequentar o tronco. A família de Centurião providenciou uma estrutura de madeira no alto da palmeira para facilitar a estadia dos hóspedes.

Araras chamam a atenção pela coloração, conformação do bico e gritaria; aves se tornaram atração para moradores

Crédito, Joao Marcos Rosa

Legenda da foto,

Araras chamam a atenção pela coloração, conformação do bico e gritaria; aves se tornaram atração para moradores

Isso foi há cerca de dois meses, e hoje um casal já choca três ovos no local. "Estamos ansiosos pela chegada dos filhotes", conta Centurião, de 51 anos.

Ao lado de Peru e Colômbia, o Brasil é o país mais rico do mundo em aves – são cerca de 1.800 espécies. No caso dos psitacídeos, uma das famílias de características mais marcantes, facilmente reconhecível pelo bico, patas e cauda, é o país mais diverso do planeta, com 82 espécies.

As araras-canindés estão entre as aves mais vendidas no mundo; captura de ovos, filhotes, adultos e coleta de penas são comuns

Crédito, Joao Marcos Rosa

Legenda da foto,

As araras-canindés estão entre as aves mais vendidas no mundo; captura de ovos, filhotes, adultos e coleta de penas são comuns

Araras-vermelhas e araras-canindé estão entre as mais comercializadas no planeta. A diversidade de cores, sociabilidade, capacidade de adaptação e de imitar a voz humana atraem o interesse das pessoas em todo o mundo.

Entre as aves, os psitacídeos são o grupo que mais sofre com o tráfico de animais

silvestres.

Crédito, Joao Marcos Rosa

Legenda da foto,

Entre as aves, os psitacídeos são o grupo que mais sofre com o tráfico de animais silvestres.

No caso das araras-canindé, que habitam desde o Panamá até a região central brasileira passando por Guianas, Venezuela, Peru, Colômbia, Equador, Bolívia e Paraguai, não há risco de extinção no Brasil, mas relatos de retirada de indivíduos da natureza são comuns.

E afinal, o fenômeno das araras na cidade é algo bom ou ruim? Neiva Guedes diz ter pensado muito até concluir que sim.

Fios chegam a ser encapados e transformadores de energia são trocados para preservar as aves

Crédito, Joao Marcos Rosa

Legenda da foto,

Fios chegam a ser encapados e transformadores de energia são trocados para preservar as aves

"Se temos araras, é porque ainda temos ambiente para elas. Bom para elas, melhor ainda para nós, que temos uma cidade bem arborizada, com frutíferas variadas dando suporte à biodiversidade. As araras são boas indicadoras dessa diversidade. Dão grande valor social a cidade e transmitem paz, tranquilidade e alegria", afirma.

O fenômeno, diz a bióloga, aponta também para a necessidade de preservação da biodiversidade em áreas urbanas.

Arara com filhotes no interior de ninho; pesquisa mostrou que, apesar da influência do trânsito de veículos, 81% dos casais tiveram sucesso no voo de aves juvenis

Crédito, Instituto Arara Azul

Legenda da foto,

Arara com filhotes no interior de ninho; pesquisa mostrou que, apesar da influência do trânsito de veículos, 81% dos casais tiveram sucesso no voo de aves juvenis

"Até 2030 a população urbana será 46% maior. Com isso, haverá pressão maior para exploração das áreas naturais, cada vez mais diminuídas. As áreas urbanas ganharão mais importância, e buscar equilíbrio entre desenvolvimento e manutenção da paisagem deve ser meta dos dirigentes públicos e de cada cidadão", diz a pesquisadora.

Escultura na Praça das Araras, em Campo Grande, presta homenagem às aves que se tornaram símbolo da cidade

Crédito, Joao Marcos Rosa

Legenda da foto,

Escultura na Praça das Araras, em Campo Grande, presta homenagem às aves que se tornaram símbolo da cidade